O Fantasma de Cahri
A capitã Helena Rockeford se levantou de sua cadeira, no centro da doca, sob os olhares discretos de seus subordinados. Não era sempre que uma notícia tirava a "Rocha" de seu trono em pleno voo de reconhecimento. Pondo-se ao lado do tenente, ela observou a tela do radar e depois mirou o gigante gasoso Cahri, que se revelava imponente e praticamente inexplorado do outro lado da janela, com sua tonalidade arenosa e rodeado por quatro luas.
- Sim, senhora.
- Aqui. Amplie.
- É o código de uma cápsula, senhora - afirmou Hawkins.
- Lance o código no banco de dados e confirme o nome da nave de origem.
O resultado surgiu na tela segundos depois:
Houve silêncio na doca. A capitã ficou sem reação por um instante e isso foi suficiente para que todos ao redor dela se entreolhassem. Rockeford era famosa em toda a União por seu temperamento "complicado" e pela falta de tolerância com as falhas de seus subordinados. Diziam as más línguas que era mais fria que um cubo de gelo, insensível. Isso fez com que a Forscher se tornasse a nave mais infame e evitada pelos cadetes. Muitos deles chegavam ao ponto de abandonar suas carreiras após a experiência de servir a bordo dela. O rumor mais recente era de que a iminência da aposentadoria a estava deixando louca após trinta e cinco anos de serviço.
- É possível, senhora - confirmou Hawkins. - Mesmo assim...
De repente, um chiado preencheu a doca, picotando a voz de um homem afoito numa inquietante transmissão de áudio. Adiantando-se à ordem que imaginou que receberia, Hawkins se dedicou a melhorar a qualidade do sinal. Visto do ângulo regulamentar, aquele era o procedimento correto a ser seguido, mas ele não tinha como saber que, para Helena, ouvir aquela mensagem seria um imenso tormento pessoal.
Rockeford ficou petrificada, os olhos fixos na tela tomada por chuviscos. Aquela voz... Impossível, pensou. A cada segundo, a transmissão parecia mais clara e algumas palavras completas já podiam ser distinguidas entre os chiados e interferências: "... cap... Anderson...corpion... abatidos em combat... requisito ajuda a qualq... da União no quadrante...".
- Capitã? Quais são as ordens? - perguntou Hawkins.
- Eu já disse, tenente. Ajuste o curso para o quadrante Colossus.
- Desculpe, capitã, mas é um pedido de SOS da União - observou a tenente Martínez, responsável pelos sistemas de defesa da nave. - Mesmo que haja chances de ser um eco, não seria contra o regulamento ignorá-lo?
Ninguém tinha como saber, mas, naquele momento, Rockeford se via diante de um cruel déjà vu. Lembrou-se em detalhes de vinte anos atrás, naquele mesmo lugar, quando finalmente conheceu o amargo sabor da guerra. A nave balançava a cada disparo haruuk absorvido pelo que restava dos escudos refletores. Algumas pessoas já estavam em pânico e tinham abandonado seus postos, crendo que o cruzador não suportaria mais um tiro direto. Como oficial responsável pelos dispositivos de defesa, ela era tudo que havia entre a vida de mais de quatrocentos tripulantes e o abismo infinito. No momento de maior crise, o capitão Scott Anderson, da A. F. Scorpion, chamou o comando da nave de Helena por rádio. "Solicitamos ajuda imediata! Estamos sob fogo direto!". Pela janela da doca, era possível ver a nave do capitão Anderson despencando em direção à superfície de Cahri, sendo perseguida por um cruzador haruuk enquanto inúmeras explosões coloriam sua fuselagem. Bastaria uma manobra de sua nave e o cruzador inimigo poderia ser facilmente destroçado, libertando a Scorpion.
- Não podemos! - respondeu Reinold.
- Recomponha-se, tenente! - bradou o velho oficial de sua cadeira. - Nossa missão é bombardear o centro de defesa desses desgraçados e é isso que vamos fazer! Só mantenha esses malditos escudos de pé!
- Capitã? - a tenente Martínez a puxou abruptamente daquele poço de memórias. - Quais são as ordens, senhora?
- Nossa missão é mapear o quadrante Colossus, tenente, e é isso que vamos fazer. - Todos os oficiais subordinados demonstraram claramente desaprovar a ordem, mas não podiam mais questioná-la. Então, veio o complemento: - No entanto... - aquelas duas palavras sozinhas fizeram todos voltarem seus olhares à capitã - ... acho que se uma de nossas cápsulas de exploração se perdesse em Cahri nós teríamos por obrigação resgatá-la, não é mesmo? Quer dizer... segundo o regulamento.
- Apague isso do registro de navegação, sargento Calahan - a ordem foi direcionada a um rapaz jovem e de bochechas fartas.
- Hawkins!
- Prepare uma cápsula de exploração. Você e Martínez vêm comigo.
Uma nuvem de poeira se ergueu quando a pequena nave pousou nos limites do mar de dunas de Cahri. Era um lugar inóspito e seco para onde quer que se olhasse. Os registros diziam que o planeta não era habitado por qualquer raça inteligente, mas se a atmosfera era respirável, era certo que haveria alguma criatura selvagem a ser evitada. Os três estavam com fardas de exploração: uma versão mais tática do uniforme, ainda que as cores não se diferenciassem: Rockeford de vermelho, Martínez de azul, cor padrão dos oficiais de defesa, e Hawkins de verde, da navegação. O sinalizador na mão de Hawkins apontava para aquele mesmo lugar, mas eles não tinham conseguido identificar nada visualmente, principalmente devido aos ventos fortes que formavam nuvens de poeira densa sobre a superfície. Isso os obrigou a usar óculos e também a protegerem a boca e o nariz com máscaras especiais. A capitã e a tenente estavam armadas com fuzis e prontas para qualquer evento indesejado.
- Eu não sei, capitã. O sinalizador diz que estamos em cima da cápsula, mas nem sinal dela. Acho melhor darmos uma olhada no perímetro. Pode ser uma variação na triangulação ou alguma interferência.
- Sim, capitã - os dois tenentes responderam em uníssono e cada um seguiu para uma direção em busca da cápsula.
- Capitã, encontrou alguma coisa? - perguntou Martínez.
Helena se aproximou da pequena nave, que já estava judiada pelo tempo; as dobradiças oxidadas, a pintura desgastada. Estendeu a mão e limpou uma pequena área da fuselagem. Lá estava: C03-AS44, mas não havia sinal de vida ao redor. A capitã desligou o rádio, empunhou o fuzil em posição de tiro e disparou uma vez contra a fechadura da porta. Quando conseguiu acesso ao interior do módulo, a surpresa: havia um corpo ressecado lá dentro, vestindo o que havia sobrado de um traje vermelho de capitania. Na mão esquerda, um comunicador; na direita, uma aliança dourada cujo interior Rockeford sabia conter o seu nome. Era o corpo de Scott, ela tinha certeza. Apesar do choque, aquilo apenas confirmava uma verdade com a qual ela havia aprendido a lidar há mais de vinte anos, por isso não chorou. Apenas tomou alguns segundos para respirar e controlar suas emoções. Logo, ela usou um pedaço da carcaça do módulo para achegar-se um pouco mais ao seu interior e notou que o rádio ainda funcionava. Por milagre, o captador de energia solar ainda era capaz de alimentar a bateria. Lá estava a mensagem sendo enviada em loop pelo rádio. Helena ligou o auto-falante e a mensagem se fez audível, desta vez sem os chiados e picotes: "Aqui é o capitão Scott Anderson, da A. F. Scorpion. Fomos abatidos em combate. Requisito a ajuda de qualquer nave da União no quadrante. Por favor... acho que sou o único que restou. Não sei por quanto tempo vou conseguir ficar aqui...". Notou-se neste momento uma mudança na voz do capitão. Ele claramente estava angustiado. "Eu... eu vou colocar esse SOS em modo de repetição e vou explorar o lugar. Tentar achar água ou comida. Se... se caso eu não conseguir, por favor, comuniquem a minha noiva, a tenente Helena Rockeford, que serve a bordo da A. F. Sparta, que... que eu a amo muito e que eu sinto muito. Sinto muito por não ter cumprido a promessa. Helena eu... eu te amo, meu amor. Se eu não conseguir, só quero que você fique bem. Prometa para mim que ficará bem. É tudo que importa...". A mensagem começou a se repetir. Os óculos da capitã se embaçaram e ela precisou abri-los por um momento para secar os olhos. Com cuidado, Helena retirou a aliança do dedo esquelético de Scott e a apertou forte numa das mãos. Em seguida, religou o rádio.
- Hawkins.
- Hawkins!
- Voltem para a cápsula e peçam que desçam com outra. Eu achei o rádio. Era um eco... mas o corpo do soldado ainda está aqui. Vamos levá-lo para a casa.
Helena suspirou e se sentou ao lado da cápsula, aguardando ser encontrada. Era hora de voltar à Forscher e deixar o passado definitivamente no passado.
- Muito bem, quem vai me dizer o que está acontecendo aqui?
- Calahan! - a capitã acionou quem seria o delator.
- Não se faça de desentendido. Reporte!
- Bem, capitã, é que... a mensagem, o SOS... nós ouvimos. Quer dizer, o Ross continuou tentando melhorar o sinal depois que vocês deixaram a doca e nós conseguimos um som limpo. Eu só queria dizer, em nome de todos nós, que... nós sentimos muito pela sua perda, capitã. O capitão Anderson certamente era um bom homem.
- Alguns dizem que nós vencemos a guerra contra os haruuk; que livramos a Terra de ser escravizada pelo império deles. A grande maioria de vocês aprendeu sobre isso na escola de cadetes: a heroica façanha da A. F. Sparta, que invadiu as barreiras inimigas e acabou com suas defesas, o que permitiu o avanço da União. Naquela época, eu ocupava o lugar da Martínez na cabine de comando da Sparta e, enquanto muitos se desesperaram e correram para as cápsulas de fuga, permaneci ao lado do capitão Reinold. Quando ele me deu a ordem de esquecer meu noivo e me concentrar na missão, achei que estava louco, talvez obcecado. "Ele é velho e não tem nada a perder", eu pensei. Como era possível ele agir tão friamente quando a Scorpion ardia em chamas bem diante de nós e a voz do capitão Anderson clamava por ajuda no comunicador? Por muitos anos eu julguei o Reinold. Para dizer a verdade, eu o amaldiçoei de todas as formas possíveis. Chorei quase todos os dias por dois anos, até que a guerra chegou ao fim. Muitos dentro desta nave eram crianças, outros sequer tinham nascido. Depois de um tempo eu comecei a perceber as famílias nas ruas. Pais ensinando seus filhos a andar, pessoas idosas se tornando avós e passando adiante sua experiência. Reparei nas plantas que nasciam no meu quintal, nas ondas que quebravam no litoral toda vez que eu viajava para lá, nas férias. Foi então que eu pude entender o capitão Reinold e, felizmente, eu consegui pedir perdão a ele antes da sua morte. Havia 11 bilhões de pessoas vivendo na Terra, todas dependendo da porcaria de um canhão, e nós carregávamos aquela coisa bem debaixo dos nossos pés. Em uma das mãos ele tinha a maldita missão; na outra, a Scorpion. Talvez vocês achem que ele estava errado em ter feito a escolha que fez, mas se estão aqui hoje, livres e ouvindo a voz de uma mulher cansada, isso se deve aos atos daquele homem. Cada um de vocês fez um juramento quando se tornou um soldado da União. Juraram dar a vida pelo bem maior da Terra e para defender sua soberania. Os homens dentro da Scorpion também tinham feito esse juramento e o capitão Reinold sabia disso. E querem saber mais? A filha do capitão estava a bordo da Scorpion naquele dia - pela primeira vez desde sempre, Rockeford sorriu diante de seus subordinados, ainda que tenha sido um gesto breve. - Agir com base nos sentimentos é uma das maiores fraquezas da humanidade. Não é que os sentimentos sejam ruins, mas é o que eles geram em nós que distorce nossa cabeça e nos torna irracionais. Se, naquela época, eu ocupasse o lugar do capitão Reinold na cadeira de comando, hoje, a Terra seria escrava do império haruuk e tudo que conhecemos seria diferente. Vocês, senhores, seriam escravos, não homens e mulheres livres à serviço do seu planeta. Hoje, eu tento ser o que Reinold foi. Alguns me chamam de Rocha, outros de megera; dizem que não tenho sentimentos ou que odeio a mesma humanidade que me proponho a defender. Na verdade, é exatamente o contrário. Eu odeio o que torna a humanidade fraca e, infelizmente, isso está presente em quase todos nós: o egoísmo. Talvez a paz acabe um dia. Talvez, quando isso acontecer, eu ainda esteja aqui. E, se for este o caso, terei orgulho de ser aquela que terá a coragem de sacrificar uma dezena de naves em troca da nossa liberdade. A questão é: vocês estariam dispostos a estar dentro dessas naves? - Diante do silêncio, Helena se virou e concluiu: - Se a resposta for não, senhores, então eu sugiro veementemente que retirem estes uniformes e voltem para a casa, porque vocês não são dignos de estar aqui. Agora, se a resposta for sim... então acho que compreenderam meu ponto de vista e eu poderei dormir em paz sabendo que a Terra ainda tem pessoas dispostas a fazer o que for necessário por ela. Agradeço pelo que tentaram fazer, mas não tenham pena de mim. Isso é uma ordem. O capitão Anderson deu a sua vida pela liberdade de cada um aqui e isso não é motivo para luto. Se deve haver um sentimento, que seja de orgulho ou gratidão.
- Senhor Hawkins.
- Ajustar o curso para o quadrante Colossus. Temos uma missão a cumprir.
Rockeford observou Cahri pela última vez e sorriu por dentro. A última cicatriz de seu passado estava totalmente fechada. Uma história não tão feliz para ela, mas traduzida em liberdade para bilhões de pessoas.